sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Dualidade.


“Era um dia chuvoso, cinza e agradável. A rua central do bairro periférico estava calma, como sempre. Todo domingo de manhãzinha eu fazia a mesma coisa: Olhar Mariana sentada na porta de casa. Só olhar e nada mais. Passava mais de uma hora admirando o par de olhos daquela moça, eram mágicos, meigos, perdidos e enxergavam longe demais pra ocupar um espaço tão pequeno. Tudo é sempre tão igual. Sentada no degrau de pedra que levava até a sala-cozinha da entrada, buscava no horizonte esperança que não vem, amor que não tem. Exceto o meu, de longe, duas casas acima, do outro lado da rua imaginando quietinho a sensação de pegá-la pela mão e apresentar a esperança que tanto buscava pelo olhar. Só me falta primeiro encontrar, e perder o medo, de revelar a ela, isso que julgo ser meu segredo.”

“Ele sempre me olha assim, de longe, calado.
Será que não vê que penso só no que a realidade trás pra mim?
Se não quer estar ao meu lado
Porque me joga olhares e gestos
Tudo o que mais detesto
É essa espera sem fim
Por mais que queira esperar-te
Não vê que a vida passa?
E se não partir da tua parte
O que me resta a fazer enfim?
Atirar-me em teus braços
Sem motivo aparente?
Se teu coração me parece dormente
Mesmo que eu saiba, contente.
Que é meu nome que a batida diz.
Não quero de ti a esperança
Que busco talvez tão distante
Só quero matar essa ânsia
De viver, ao invés de existir.”

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Singelo.



Canta como se fosse o último acorde a sair de tua garganta.
Pois o que me comove é como os espanta
Com tua voz de rebelde albatroz.
Cultuaram tua forma e nada mais.
Contorno do que não fostes.
Alivio que o vento não trás.
Não mais tinha também
Ninho ou qualquer regalia
Quebrava os galhos ao pousar na oliveira
É triste, não és mais cotovia.
Corvo.
Corpo.
Só me resta arrancar tuas penas
E guardar, pra quando o inverno chegar.
Eu ver teu encanto
Ouvir doce pranto de acorde limiar
E se for o último a sair da garganta?
Não importa
A quem ainda escuta lá fora
Não vale a pena mais cantar.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Fin.


Mas no fim o que realmente importa? É isso? Ponderou estupefato do horror que vira. Eram brasas e rochas, desenfreadamente agitando-se comemorando talvez livrar-se de seres tão horrendos. Um crocitar medonho viajava pelo estéreo de seus ouvidos como se gritos de guerra vikings ecoassem dentro de sua cabeça. Como era estranho estar ali, mesmo que não soubesse exatamente onde era. Pangéia, no fim volta-se a Pangéia? Que seja, tanto faz o nome que deram pra isso, mas não parecia tão bem dividido, embora nunca tenha sido de fato. As águas eram geladas, harmonicamente geladas, contrastando com pedras incandescentes. Via seres belos e imponentes viajando por suas correntezas implacaveis, seres que pareciam guiar aquelas correntezas. Via Deuses mortos, estatuas jogadas ao chão, corpos aglomerados de fieis esperando um julgamento. A única a julgá-los era Nyx.Implacável, sorrindo para uma Gaia que chorava,um sorriso prazeroso como nunca. Ele pensara que tudo isso era culpa de Cronos. Até abrir os olhos para detalhes gigantes, Sophia soprava-lhe ao pé do ouvido sílabas com gosto de ferrugem. Era o novo metal.Novo ao compará-lo com todos que assistiam a este espetáculo de milhões de anos.Não fazia diferença, seu tempo nunca foi linear, pelo menos não até surgirem os repugnantes. Os matadores de metáforas, os incompreensíveis e ignorantes que nada entendiam. Ali via que Cronos apenas desempenhava seu papel, de forma diferente pra cada força e que a harmonia invisível era uma fina camada de gelo prestes a se quebrar.Enxergava que essa fina camada parecia grossa aos olhos de seres minúsculos, não de tamanho, nem de capacidade de pensar, mas sim pequenos em sua grandeza exacerbada.O gelo quebrarase. Enfim suspirava a natureza. Não era o último, era apenas o primeiro suspiro em paz depois de um curto período que parecera tão longo. Mas no fim o que realmente importa? Dessa vez perguntava em voz alta, esperando uma resposta de Gaia. Nyx tomou a frente e respondeu-lhe: "Todo linear é ciclico. Onde não há Caos nem Pensamento não existe recomeço. Lamentãvel o quão curto foi o vosso, como pode ver, exclusivamente por culpa de quem não compreende mesmo que os alertas sejam explícitos, mesmo que o fim seja iminente. Agora tudo voltará para a mais plena paz, até que venham outros como vocês e o mesmo ciclo recomece, sempre com a esperança de que equilibrem-se sobre as águas que voltarão a congelar".Acordou após a resposta e constatou que o que acabara de ver era apenas uma hipérbole da realidade. Uma visão do futuro. Catástrofe. É isso?Já não podia ponderar.Afirmava.